domingo, 28 de outubro de 2012

José Inácio Vieira de Melo


MOISÉS

Há sempre uma azia louca,
há, desde sempre,
uma árvore em chamas,
o homem é assim:
um tição perdido,
uma estrela sem guia.

E o mar é cabelo aberto ao meio
– a ruiva cabeleira azul –,
o mar é mijo encarnado
que se fende com espada,
cajado sagrado de encontro
às verticais ilusões.

E conduzir sem saber para onde,
e dar voltas sem nunca chegar,
e, percebendo a morte,
inventar a terra prometida:
lugar do qual suas sandálias
nunca darão notícias.


Decifração de abismos: 1998 a 2001 / José Inácio Vieira de Melo. – Salvador: J.I.V. de Melo, 2002.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A boca do inefável


Cobre-te melhor
a seda rasgada,
contornando teu corpo,
nas fendas de meu desejo.
E esse cheiro
das madrugadas
em que me masturbo
de tanta insônia.
Os momentos
perdidos, em um sonho
mau, tornam justo esse
pesar por amanhecer,
e ter que partir
nessa rotina
que me afasta de ti,
obscena mulher,
de língua áspera,
imensa,
onde derramo
minhas noites de macho
                  perdido.

Jorge Elias Neto

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Tempo espanhol - Murilo Mendes


São João da Cruz

Viver organizando o diamante
(Intuindo sua face) e o escondendo.
Tratá-lo com ternura castigada.
Nem mesmo no deserto suspendê-lo.

Mas
Viver consumido da sua graça.
Obedecer a esse fogo frio
Que resolve em ponto rarefeito.
Viver: do seu silêncio se aprendendo
Não temer sua perda em noite obscura.

                        *

E, do próprio diamante já esquecido,
Morrer, do seu esqueleto esvaziado:
Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.


O PADRE CEGO

Não abençoes a espada.
A morte lúcida não virá da espada do homem,
Antes virá da estocada de Deus.

Tu que consagras o pão e o vinho,
 Por que abençoas a espada?

Queres o regresso do rei Felipe:
É um esqueleto de mármore.

Não distingues próximo à tua casa
 O rio subterrâneo que marcha
Desde a Galícia à Andaluzia.
Não distingues o timbre áspero da greve.

És pai vigilante, ou assasino?
Não abençoes a espada.


Tempo espanhol – Murilo Mendes – Rio de Janeiro: Record, 2001.